Quando a palavra “Caatinga” vem à mente, para muitas pessoas que ainda não puderam conhecê-la, talvez a primeira imagem na memória seja a de um lugar árido. Há pontos da Caatinga que são assim mesmo. Mas um grupo de pesquisadores está propondo uma nova classificação do maior semiárido da América do Sul.
O biólogo Marcelo Freire Moro, pós-doutor pela Unicamp e professor do curso de Ciências Ambientais da Universidade Federal do Ceará (UFC), coordenou esse estudo que foi publicado no início de outubro na revista Botanical Review.
"A compreensão de que a Caatinga é formada por subtipos diferentes de caatinga é antiga. Em 1981, um pesquisador chamado Andrade-Lima já dizia que a Caatinga deveria ser chamada de 'as Caatingas', pois dependendo do ambiente há consideráveis variações florísticas entre elas", comenta.
O pesquisador explica que em 2002 foi publicado um mapa dividindo a Caatinga em várias ecorregiões. Esse mapa foi muito importante porque mostrava com mais detalhamento a localização de alguns dos grandes ambientes dentro da Caatinga, alguns deles com floras contrastantes.
Mas o mapa de 2002 ficou desatualizado. Com o passar dos anos, verificou-se que alguns limites estavam incorretos e o mapa de 2002 também não seguia os limites oficiais da Caatinga conforme mapeado pelo IBGE.
"Então, em 2016, conversando com o professor Rubson Maia, da UFC, resolvemos fazer um mapa atualizado, mostrando os grandes macroambientes dentro da Caatinga (áreas cristalinas de terras baixas, áreas cristalinas montanhosas, áreas arenosas e áreas com calcário, além da Chapada Diamantina) e avaliando as diferenças na biota da Caatinga entre esses macroambientes".
"Nos anos que se seguiram, agregamos outros colaboradores da botânica e da geografia e fomos registrando quais espécies ocorriam apenas em uma das unidades, propondo cada uma delas como um 'distrito' biogeográfico da Caatinga. Com isso, dividimos a Caatinga em pedaços menores, cada um deles com algumas ou várias espécies exclusivas", explica o coordenador do estudo.
Um dos fatores levados em consideração para a reclassificação está no tipo de substrato no qual as plantas se fixam. Nos distritos biogeográficos há vários tipos de solos diferentes, mas há distritos que possuem solos muito arenosos e profundos, outros, solos rasos e argilosos, outros têm redes de cavernas extensas.
A equipe verificou que cada macroambiente (Depressão Sertaneja, Borborema, Bacias Sedimentares Arenosas e Bacias Sedimentares com Calcário) possui vastas áreas com características mais ou menos coerentes, mesmo quando o tipo de solo varia. Temos ainda as mudanças de altitude e clima. Subindo a Chapada Diamantina temos um clima mais frio, em várias serras temos encraves de matas úmidas por conta das chuvas de relevo. Então, o tipo de substrato é importante para definir as unidades, mas há também gradientes de altitude e precipitação envolvidos.
Marcelo Moro diz que era necessário ter um bom mapa da geografia física da Caatinga sobre a o qual mapeariam as espécies. Um desafio, no entanto, era analisar as mais de três mil espécies de plantas existentes na Caatinga.
Por isso, a pesquisa reuniu profissionais de diferentes áreas. Entre eles,?a botânica Daniela Zappi, o botânico aposentado do Jardim Botânico de Kew no Reino Unido, Nigel Taylor, a botânica Vivian Amorim da Universidade Federal do Cariri, e o botânico Luciano Queiroz da Universidade Estadual de Feira de Santana, e os geógrafos Rubson Maia da UFC e Luís Costa da Unimontes.
O grupo de pesquisa teve como ponto de partida um mapa publicado em 2002 por Agnes Velloso e outros pesquisadores ligados à The Nature Conservancy e Associação Plantas do Nordeste que teve atualizações com o passar dos anos.
"Em 2019 o IBGE lançou um novo mapa de "Biomas do Brasil", mudando a delimitação oficial da Caatinga. E em 2020 Luis Costa, Rubson Maia, Lucas Barreto e a professora Vanda Claudino-Sales fizeram um mapa geomorfológico atualizado para parte do Nordeste. Assim, por um lado, os limites oficiais da Caatinga definidos pelo IBGE não eram compatíveis com o mapa de 2002, e por outro, os mapeamentos mais recentes mostravam várias lacunas de informação e erros geográficos no mapa de 2002. Por conta disso, resolvemos fazer um novo mapa", pontua Moro.
Para o estudo ter um parâmetro, a classificação adotou a nomenclatura internacional de áreas de endemismo, publicada em 2008 no Journal of Biogeography. A iniciativa facilitou a padronização para deixar o trabalho compatível com estudos realizados em outros países. Embora a Caatinga ocorra no Brasil, ela é incluída em mapas globais e continentais.
O sistema de classificação biogeográfica é hierárquico. Existem categorias menores dentro de categorias maiores. As maiores são os reinos, seguidas por regiões, domínios e províncias. Dentro das províncias, ficam os distritos biogeográficos.
"Chegamos à conclusão de que dentro do vasto espaço geográfico das Caatingas temos o 'Domínio da Caatinga', dividido nas províncias biogeográficas da Caatinga, a maior e onde predomina a vegetação de caatinga, e da Chapada Diamantina, onde há um tipo de vegetação bem diferente, os campos rupestres", pondera Moro.
"Além disso, temos os encraves de savana (ligados ao Cerrado) e de matas úmidas (ligadas à Mata Atlântica e até mesmo à Amazônia) no meio da Caatinga e o litoral da Caatinga, onde não temos vegetação de caatinga em si. O que no mapa de Biomas do IBGE parece ser uma coisa só, é  um domínio complexo, com vários subtipos de ambientes. Essa mesma complexidade ocorre também nos outros biomas", completa.
A pesquisa apontou vários detalhes interessantes. Várias plantas são restritas apenas a um dos ambientes. A planta Holoregmia viscida, por exemplo, é restrita à Depressão Sertaneja Sul, o cacto Tacinga mirim à Depressão Sertaneja Norte e várias espécies do gênero Ameroglossum são restritas à Borborema.
No caso das caatingas de areia, há ainda mais espécies endêmicas dos terrenos arenosos, ou seja, plantas e animais que só existem lá. Um exemplo bem curioso é o do 'lagarto escrivão' Scriptosaura catimbau, um lagarto sem patas que rasteja por baixo da areia, deixando marcas no solo.
Mas há também cobras fossoriais endêmicas e até um roedor presente apenas nas dunas do São Francisco. Entre as plantas restritas às caatingas de areia, destaque para a Cearanthes fuscoviolacea, Pavonia capivarensis, a bromélia Encholirium erectiflorum e os cactos Pilosocereus flavipulvinatus e Pilosocereus catimbauensis.
Nessa colcha de retalhos que formam a Caatinga, a costa entre o Piauí, o Ceará e o Rio Grande do Norte também receberam a reclassificação.
"A costa da Caatinga não tem vegetação de caatinga. Lá é mais úmido que nas áreas de caatinga típica, mas mais seco que nas áreas de mata atlântica ou floresta amazônica. E tem clima comparável ao de áreas de cerrado. Então, várias espécies de cerrado e caatinga ocupam essa área costeira e até algumas espécies da Mata Atlântica ou da Amazônia. E, claro, várias espécies comuns do litoral brasileiro. Tudo isso se mistura aqui", finaliza o coordenador do estudo.
Se o sertão vai virar mar, como diz a letra da música é difícil prever. Mas certamente esse estudo já mudou a forma como a Caatinga era vista.
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